O PREGADOR COMO TEÓLOGO E A PREGAÇÃO COMO CANAL DE DOUTRINAÇÃO

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Ainda que alguns questionem e até ofereçam objeções, a verdade é que cada pastor é chamado para exercer a função de teólogo. A resistência nesse sentido decorre do fato de que muitos vêem a teologia apenas como uma disciplina a ser estudada no seminário e não como uma atividade central e contínua no ministério pastoral. Em 1994, a revista Christianity Today publicou o resultado de uma pesquisa feita entre os evangélicos americanos sobre a opinião das pessoas, tanto pastores quanto ovelhas, em relação às características imprescindíveis do ministro cristão. A grande maioria classificou o conhecimento teológico como a última de cinco qualidades necessárias ao pastor.[1] No Brasil, a perspectiva não deve ser muito diferente, pois, como afirma João Alves dos Santos, “é comum ouvirmos que ‘a teologia mata a religião’”.[2] Dessa forma, para alguns, o exercício ministerial e a função teológica são dois fatores antagônicos.

Na verdade, um significativo número de cristãos é guiado pela pressuposição de que o ministério pastoral é essencialmente prático, enquanto que o zelo doutrinário é um exercício árido, acadêmico e distante da realidade diária. Por mais atraente que essa idéia possa parecer, ela não corresponde à verdade do que ocorre no ministério pastoral e nem possui qualquer sustento bíblico. A saúde e vigor espiritual de uma igreja estão intimamente conectados ao fato do pastor atuar como um teólogo fiel, ensinando, pregando, praticando e aplicando as doutrinas da fé cristã.

A concepção da teologia como uma abstração acadêmica é relativamente recente e tem sido um dos fatores mais lamentáveis dos últimos séculos. No início do cristianismo e ao longo da história da igreja, os teólogos que mais se destacaram eram pastores profundamente comprometidos com o rebanho. Nomes como os de Irineu, Atanásio e Agostinho sobressaíram por suas reflexões teológicas, fruto dos desafios que eles enfrentavam na atividade pastoral.[3] Na Reforma Protestante, Martinho Lutero, Ulrico Zuínglio, João Calvino[4] e Martin Bucer foram considerados os principais teólogos daquele movimento. Eles eram, acima de tudo, pastores “sensíveis às mais profundas lutas e esperanças de sua época”.[5] Semelhantemente, o puritanismo, que produziu reflexões teológicas tão profundas através de homens como Thomas Goodwin, John Owen e, mais tarde, Jonathan Edwards, era um movimento essencialmente pastoral. Para homens como esses, a reflexão teológica era parte central de suas funções como ministros da Palavra.

Historicamente, a dicotomia entre teologia e prática coincidiu com o desenvolvimento do conceito moderno de universidade, bem como a sua ênfase na profissionalização de áreas. No campo religioso também ocorreu um fenômeno de fragmentação entre a natureza e a graça, sendo que a primeira foi identificada com a pesquisa acadêmica e a segunda com a devoção pessoal a Deus. Até esses acontecimentos o conhecimento teológico adquirido nas instituições de ensino destinava-se à edificação da igreja como um todo. Contudo, a ênfase moderna quanto à especialização da pesquisa fez com que a teologia fosse considerada apenas uma disciplina entre as outras. Além do mais, a secularização da academia exigiu o alto preço da redefinição da teologia, reduzindo-a a “estudos religiosos” ou “ciência da religião”. O problema é que enquanto a teologia é o estudo do Deus revelado e de sua relação com o mundo, os estudos religiosos são reduzidos à análise da religião como “fenômeno sócio-devocional”. Nesse caso, o objeto do estudo teológico pode estar completamente divorciado da fé cristã e de suas reivindicações bíblicas.

O fato é que todo esse “desenvolvimento” tem causado muitos males à igreja. Em grande medida o ministério pastoral tem ficado desprovido de qualquer reflexão teológica séria e saudável. Com isso, o rebanho não é alimentado e as feridas são curadas apenas superficialmente. Em contrapartida, muitos “teólogos por profissão” deixam de exercitar qualquer compaixão pelas almas e sensibilidade com os que sofrem, ou seja, a prática pastoral. É necessário haver uma reforma nesta área. Cada pastor precisa acordar para o seu chamado teológico e cada teólogo deve exercer a sua vocação pastoral.

De acordo com as Escrituras, um dos canais mais diretos para o exercício do ministério teológico-pastoral do ministro do evangelho é a pregação bíblica. Paulo exortou a Timóteo: “ . . . prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina” (2Tm 4.2). Essas palavras testificam claramente sobre a relação entre o trabalho pastoral e a pregação bíblica. Qualquer pessoa que quiser cumprir fielmente sua vocação ministerial deverá atentar para essa conexão.

A pregação doutrinária parece ser uma atividade em extinção nos púlpitos cristãos, inclusive nos círculos evangélicos. Ao considerar a galeria dos grandes pregadores ao longo da história da igreja, bem como alguns tópicos relacionados à atividade da pregação, se percebe a existência do vínculo estreito entre o púlpito e o ensino da igreja. Esse vínculo foi uma das grandes contribuições do cristianismo protestante até alguns anos atrás, quando o mesmo sucumbiu em face da influência do pragmatismo e alterou sua ênfase. Segundo a perspectiva contemporânea, uma boa mensagem é aquela que “funciona” em relação aos seus ouvintes. Dessa forma, a rendição ao pragmatismo apresenta resultados tão negativos que “em certos círculos, o recado é que a pregação deve ser abandonada”.[6] Todavia, consideremos alguns aspectos desta relação.

A pregação é em si mesma uma atividade de doutrinação da igreja. A mensagem apresentada no sermão será sempre doutrinária, pois o pregador transmite uma doutrina (ensino) sempre que se dirige a igreja. A palavra grega para ensino, didasko, é a mesma empregada para doutrina. Logo, ensinar é, em si, doutrinar. O pregador zeloso deve sempre se orientar pelo texto bíblico, não apenas quanto à classificação e organização do material a ser pregado, mas também quanto à doutrina a ser enfatizada no seu sermão. Por exemplo, a parte inicial de 1Samuel é notadamente uma biografia de Saul que pode ser abordada de diversos ângulos. Há, todavia, uma riqueza doutrinária a ser explorada naquela biografia que revela a graça e a soberania de Deus, a responsabilidade humana, a disciplina do Senhor, etc. Ao expor um texto bíblico, o pregador está doutrinando a igreja.

O declínio da pregação bíblica possui causas doutrinárias. Um dos grandes problemas do pregador contemporâneo é que ele encontra-se desprovido de uma mensagem autoritativa devido a dois fatores básicos. Por um lado, “boa parte da teologia moderna lhe oferece [o pregador] pouco mais do que palpites santificados, e suspeita de que os sofisticados nos bancos das igrejas têm mais fé nos textos da ciência do que nos textos da pregação”.[7] Por outro lado, muitos pregadores já não sustentam uma crença inabalável na suficiência das Escrituras. Nesse ponto, Lloyd-Jones assevera: “Uma vez que isso desapareceu, e os homens começaram a especular, a postular teorias, a apresentar hipóteses, e assim por diante, a eloquência e a grandiosidade da palavra falada inevitavelmente passaram a declinar e começaram a desvanecer”.[8] Como resultado de tudo isso, houve uma demasiada valorização da oratória e do orador. Assim, a forma tornou-se mais importante do que a substância, a oratória e a eloquência tornaram-se coisas valiosas por si mesmas, e, por fim, a pregação tornou-se uma forma de entretenimento. Em alguns casos, é triste constatar que as pessoas ficam mais impressionadas com as habilidades dos mensageiros do que com a mensagem apresentada.

O preparo pessoal do pregador é um desenvolvimento de suas convicções doutrinárias. Phillips Brooks costumava referir-se à pregação como a “verdade mediada pela personalidade”.[9] Ele entendia que o ato de pregar nunca pode ser divorciado da pessoa do pregador. Assim como a preparação do sermão inclui necessariamente a preparação do pregador.

A piedade e a consagração na vida cristã, e especialmente no ministério, são respostas à compreensão doutrinária acerca daquele que convoca ao serviço e que vocaciona ao ministério da Palavra. Jesus deixou claro que aquele que ama mais é aquele que teve uma compreensão maior de sua miséria e da grandeza do perdão de Deus (Lc 7.41-17). Assim sendo, o princípio de orare et labutare no ministério é fruto de um entendimento doutrinário sólido que procura a glória do Senhor acima de todas as coisas. A preparação do pregador não é apenas intelectual, mas também espiritual, o que faz com que a oração seja um exercício imprescindível na vida do mesmo. A oração é a parceira inseparável do ministério da Palavra (At 6.4). Dependendo de sua teologia sobre a oração, o pregador pode tanto ser motivado a dobrar-se em súplicas, como a omitir totalmente essa atividade em sua obra ministerial.[10] Além do mais, a freqüência da leitura e meditação bíblicas estão intimamente dependentes das convicções doutrinarias sobre a Palavra de Deus. Até mesmo as ferramentas hermenêuticas e exegéticas a serem empregadas na preparação de um sermão possuem suas âncoras em bases doutrinárias. Para uma perspectiva desconstrucionista, por exemplo, nenhuma dessas ferramentas é necessária, pois o significado do texto é atribuído por seu leitor antes que por seu autor. Para aqueles que crêem serem as Escrituras a Palavra de Deus e o conteúdo da verdadeira pregação o mistério revelado do evangelho (Cl 1.26), os princípios de uma hermenêutica objetiva são indispensáveis.

Alguns argumentos comumente apresentados como justificativas para a negligência à pregação doutrinária são apenas falácias marcadas pela superficialidade doutrinária. A expressão populista “doutrina divide a igreja” é, geralmente, usada para defender a omissão da pregação doutrinária. Esse populismo, porém, não é o único argumento utilizado. Há outras falácias que são empregadas e propagadas entre alguns pregadores a fim de justificar a negligência ao ensino doutrinário a partir do púlpito.

Um dos argumentos mais comuns nesse sentido é o de que sermões doutrinários são apenas aqueles que abordam um tema especificamente teológico. Parte da origem dessa concepção equivocada deve-se à prática comum em alguns seminários onde, pelo menos um dos sermões a ser avaliado, deve abordar um tema teológico. Todavia, todo sermão é doutrinário e teológico (se ele está fundamentado nas Escrituras). Ao pregar um sermão, o pregador está ensinando uma doutrina. Ele pode até não estar consciente desse fato, o sermão pode ser uma heresia ou uma filosofia totalmente anti-bíblica, mas de alguma maneira é uma doutrina, boa ou ruim. A congregação dos ouvintes pode não ser capaz de definir qual doutrina é apresentada, mas grande parte dos presentes será influenciada pelo que é ensinado por aquele que ocupa o púlpito.

Outra falácia utilizada para justificar o abandono da pregação doutrinária é o argumento daqueles que defendem possuir um interesse meramente espiritual. Para esses, tudo o que importa é alimentar as ovelhas a fim de que fortalecê-las para a caminhada cristã. Por mais nobre que seja a intenção desses pastores, o fato é que, como foi visto, a vida e o testemunho cristão demandam conhecimento doutrinário. Um sólido cuidado pastoral demanda um ensino doutrinário sadio, pois a verdade é excelente remédio para o coração ferido (Pv 3.21-22).

Um terceiro argumento que evidencia a negligência à pregação doutrinária é o de que a igreja é mais edificada através dos cânticos espirituais do que das pregações sobre temas complexos. Talvez seja esta uma das razões pelas quais, com o declínio da pregação, tem-se dedicado um tempo maior aos cânticos e hinos espirituais durante os cultos públicos. Essa situação é preocupante por dois aspectos. Primeiro, os defensores desse argumento se esquecem de que cânticos e hinos são meios de propagação doutrinária. Eles são doutrinas cantadas. Em alguns casos, porém, a doutrina transmitida por esses veículos é de péssima qualidade, chegando até mesmo a constituir-se em heresias quando comparadas com o ensino das Escrituras. O segundo aspecto preocupante a esse respeito é o fato de que a suplantação da pregação pelos cânticos exclui o instrumento central de instrução do povo de Deus. Como disse Lloyd-Jones “a pregação é muito mais importante do que a liturgia e longos cultos litúrgicos, porque a pregação ensina as pessoas a orar [e a adorar]”.[11] A música, em si, pode ser um excelente instrumento para gravar uma doutrina na mente de uma pessoa, quer seja ela verdadeira ou falsa.

Concluindo, talvez a primeira coisa a ser feita em prol do resgate da visão do pastor como um teólogo da pregação como meio de doutrinação da igreja seja reafirmar a centralidade da pregação no culto público. À luz de 1Coríntios 1.21 pode-se afirmar que a pregação é o meio divino para desmascarar a tolice do mundo e manifestar a sua sabedoria àqueles que o conhecem. Além do mais, a palavra proclamada é o meio divino para converter e gerar a fé salvadora nos corações humanos (Rm 10.17). Outra atitude a ser tomada nesse caso diz respeito à vida de estudo e preparo do pregador. As exigências do ministério são suficientes para manter o pregador afastado de seus estudos e levá-lo a pregar apenas mensagens elaboradas apresada e pobremente. O cuidado a ser tomado nesse caso é que, até mesmo de forma inconsciente, o pregador pode estar passando a mensagem de que o estudo das Escrituras não é algo importante na vida cristã. Talvez seja esta uma das razões pelas quais o “cristianismo moderno possui quilômetros de extensão e apenas alguns centímetros de profundidade”.[12] A verdadeira pregação envolve ensino, ou seja, a comunicação doutrinária em prol do renovo e da transformação da mente e coração humanos. Assim, resta ao zeloso pregador orar como Moisés: “Goteje a minha doutrina como a chuva, destile a minha palavra como o orvalho, como chuvisco sobre a relva e como gotas de água sobre a erva. Porque proclamarei o nome do Senhor. Engrandecei o nosso Deus” (Dt 32.2-3).

Rev. Valdeci S. Santos  – SNAP

[1] Christianity Today, 24 de outubro de 1994, p. 75.

[2] SANTOS, João A. A igreja precisa de teologia? http://www.ipcb.org.br/Publicacoes/igreja_teologia.htm(acesso 25.05.2006).

[3] GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, vol. 2, p. 15. Cf. BENOIT, André. A atualidade dos pais da igreja. São Paulo: ASTE, 1961.

[4] FERREIRA, Wilson Castro. João Calvino. Rio de Janeiro: Casa Editora Presbiteriana, 1971, p. 26: “A teologia de Calvino nasceu na vivência diária dos problemas pastorais, escrutinizados à luz da Palavra de Deus”. Cf. WALLACE, Ronald. Calvino, Genebra e a reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p.141-154.

[5] GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 21.

[6] Robinson, A pregação bíblica, p. 13.

[7] ROBINSON, A pregação bíblica, p. 13.

[8] Lloyd-Jones, Pregação, p. 9.

[9] Apud Lloyd-Jones, Pregação, p. 59.

[10] Cf. Rosscup, James E. “The priority of prayer and expository preaching,” Rediscovering expository, pp. 63-84.

[11] LLOYD-JONES, Martin, Os puritanos, p. 386.

[12] PAKER, J. I. Na dinâmica do Espírito. São Paulo: Vida Nova, 1991, p. 10.

 

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